Em primeiro lugar, é importante esclarecer que seres humanos são seres sociais. Assim afirmou o filósofo da antiguidade helênica, Aristóteles, e ainda assim afirmam pesquisadores e filósofos modernos. De modo geral, precisamos viver em grupos, sobretudo, mais que viver nesses grupos, sentir a necessidade em sermos aceitos, amados e respeitados. Parece empírico perceber que isto é uma necessidade visceral para nós. 4g5e2t
O fato é que, além de sermos seres sociais, somos também simbólicos, isto é, nossa mente é simbólica. Para o historiador Yuval Harari, autor de “Sapiens uma breve história da humanidade”, essa capacidade da nossa mente trabalhar com símbolos, com o imaterial, com o metafísico é o que nos define como espécie. Note que estes símbolos são tão fortes que podem moldar inclusive o que nos é sagrado ou profano. Assim nos apontou o filósofo e historiador das religiões Mircea Eliade:
A manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra, uma árvore, e até para um cristão a encarnação de Deus em Jesus Cristo. Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso e simbólico: Manifestação de algo de ordem diferente, de uma realidade que não pertence ao nosso mundo, porém em objetos que fazem parte de nosso mundo. (ELIADE, 2010)
Portanto, podemos perceber que símbolos, histórias, religiões e tantas outras ideologias aproximam ou afastam pessoas, formam grupos, opiniões e também podem formar conflitos, preconceitos e etnocentrismos dos mais variados. Diante disso, podemos fazer uma breve pergunta: como humanos modernos, qual papel da mídia na construção desses símbolos, destas ideologias, destas variadas percepções que temos do mundo e também do outro?
Partindo do pressuposto que símbolos e narrativas expressas nas diversas formas de mídia formam opiniões e narrativas, que de certa forma serão enxergadas como realidade ou frações de realidade, atentemos para como a mídia corrobora com diversos preconceitos que temos sobre o continente africano. É normal vermos retratados em livros, revistas, filmes e séries a África como centro de todo e qualquer tipo de mazela que aflige a humanidade.
Dentro desse contexto, o que se retrata nessas obras diversas são: fome, pobreza, doenças, corrupção, guerras, violência e o que mais pode estarrecer o homem moderno. Trataremos brevemente desse tipo de visão enviesada a partir da obra, exposta em formato de série “SENSE 8”.
A série foi escrita e dirigida por Lilly e Lana Wachowski, sendo lançada no serviço de streaming “NETFLIX”. A narrativa gira basicamente em torno de oito personagens, que estão espalhados ao redor do globo que, entretanto, estão interligados por um fenômeno fictício nomeado pela obra de “ressonância límbica”. Tal fenômeno permite e até mesmo força todos os oito personagens a dividirem suas emoções, sentimentos, sensações e até mesmo sentidos físicos, ou seja, os personagens vivem quase que uma única vida dividida em oito espectros. Aqui focaremos nossa atenção em Capheus Onyongo: um jovem africano cidadão de Nairóbi, no Quênia.
A trama nos apresenta o jovem Capheus como um miserável. Sim, o rapaz é bem jovem, embora não dita sua idade durante a obra. O que a narrativa nos apresenta é um homem negro na casa dos vinte a vinte cinco anos que, apesar da pouca idade, vê sobre os ombros a responsabilidade de cuidar da mãe doente. Vamos agora relatar alguns aspectos importantes para a formação da narrativa do personagem, bem como do ambiente onde ele está inserido:
Nota-se que o escolhido para composição do personagem é fruto do esteriótipo ocidental e eurocêntrico do que é a África. Não que tenhamos material o suficiente para negar os problemas do continente, entretanto, as escolhas que fazemos para retratar a África, bem como seus habitantes, são sempre as mais negativas possíveis. Na obra em questão, os outros “sensitivos” têm funções mais nobres ou emocionantes como: um condecorado policial, uma hacker ativista política, uma renomada “DJ”, um especialista em cofres e uma “CEO” asiática especialista em artes marciais, dentre outros.
O jovem Capheus é um fracassado motorista de VAN, vivendo uma vida miserável com sua mãe doente, com a nada surpreendente doença, a AIDS. Seu contexto social é de um país pobre, famélico, violento, corrupto e fracassado. O que resta a Capheus? Resta idolatrar um ícone “hollywoodiano”, e com um atento detalhe, a escolha de “Van Dame”. Não nos parece nem um pouco aleatória, haja vista que o auge do ator mencionado é a década de 90.
O que assistimos é uma África pobre, faminta, violenta, atrasada, rural, selvagem. Selvagem no mais amplo espectro, com pessoas vivendo pela lei do mais forte, doentes e famintas, entregues a natureza bruta. E o Jovem assume então a única coisa que lhe resta: uma posição de subserviência e encantamento em face aos seus companheiros.
E esse é o grande problema em questão. Contamos histórias a partir de nossos recortes, de nossas próprias verdades incompletas e enviesadas, onde as estruturas do que achamos normal é colocar a África e o africano sempre como fracassados.
Que possamos então ouvir e ver, sobretudo, contar novas histórias sobre guerreiros, poetas, reis, rainhas e deuses que foram impiedosamente sequestrados de seus lares, mas que lutaram e ainda lutam por reconhecimento. E para um historiador de lugares, são apenas lugares, nem bons e nem maus, apenas fruto de seus próprios contextos e temporalidades.
ADICHIE, C. H. O Perigo e uma única história. TED global, 2009. Disponível em: https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_the_danger_of_a_single_story?language=pt-br. o em 01 ago. 2023.
ELIADE, M. O sagrado e o Profano. WWF Martins Fontes, 1992, 192 p.
ELIADE, M. Tratado de história das religiões. WWF Martins Fontes, 1993, 504 p.
HARARI, Y. N. Sapiens, uma Breve história da humanidade. Companhia das letras, 2020, 472 p.
SENSE8. In Wilkipédia, enciclopédia livre. Estados Unidos, NETFLIX, 2015. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sense8. o em 01 ago. 2023.
Publicado por Rafael Rocha Porciúncula Rodrigues[1] e Cleide da Silva Canario[2]
[1] Aluno do Curso de Licenciatura em História da Universidade Veiga de Almeida.
[2] Professor Tutor do Curso de Licenciatura em História da Universidade Veiga de Almeida.
Fonte: Brasil Escola - /historia/a-desconstrucao-de-estereotipos-sobre-visoes-reduzidas-do-continente-africano-uma-analise-critica-da-serie-sense-8.htm