O SELETIVO SISTEMA PRISIONAL E O MITO DA LIBERDADE NOS ESTADOS UNIDOS: UMA REFLEXÃO A PARTIR DE “A 13ª EMENDA” (2016) E “OLHOS QUE CONDENAM” (2019) 1l2c3v

Breve análise sobre o sistema prisional e o mito da liberdade nos Estados Unidos a partir de uma ótica dialógica entre "A 13ª emenda" (2016) e "Olhos que condenam" (2019). t188

A construção da nação estadunidense está ligada à ideia da garantia universal das liberdades civis dos seus indivíduos. Isto é, o almejado estilo de vida dos Estados Unidos está relacionado a uma imagem construída sob esses ideais como sinônimo do ápice da civilidade democrática mundial (KRAUZE, 2010, p. 7). Entretanto, históricos episódios discriminatórios no país atestam as contradições presentes nesse ideal na prática e demonstram a intrinsecidade - tão renegada - entre liberdade e igualdade. O grande exemplo disso ocorre com a seletividade presente no sistema prisional estadunidense, em que os afro-americanos são as grandes vítimas de um racismo historicamente institucionalizado. Abordando exatamente essa questão, o documentário “A 13ª Emenda” (2016) e a minissérie “Olhos Que Condenam” (2019), ambos da diretora Ava DuVernay, debruçam suas reflexões sobre a história e a atualidade dessa problemática social nos Estados Unidos. 1e656a

No final do século XVIII, a Revolução Americana de 1776 rompeu com os laços autoritários do Império Britânico e instaurou, na teoria, os princípios liberais que ecoariam na América e no, até então, mundo colonial. Sobre tal episódio, todavia, recortes bem específicos devem ser feitos, posto que a Liberdade, preconizada pelos revolucionários, na prática, mostrou-se como dialética e contraditória, uma vez que ela não se configurou como total e nem universal. Os grandes excluídos da nova República Americana foram os negros escravizados que, impedidos por mecanismos legais, não tinham direito à humanidade e, por conseguinte, não podiam participar como protagonistas reais da construção do novo país. 

Mesmo após a promulgação da Constituição (1787), a síntese legal desse processo revolucionário, a declaração da emancipação dos negros escravizados só foi possível 76 anos após a aprovação do texto constitucional, como resultado da vitória da União na Guerra Civil (1861-1865). Declarada pelo presidente Abraham Lincoln em 1863 e consolidada pela 13ª Emenda à Constituição em 1865, a liberdade, após esse período, estava destinada a todos os cidadãos estadunidenses, sendo eles brancos ou negros. No entanto, para isso, na emenda constitucional, existia uma exceção: aqueles que fossem condenados por algum crime teriam sua liberdade cassada pelo Estado e, a partir desse instante, se transformariam em trabalhadores forçados do governo norte-americano.

Dando nome ao renomado documentário de Ava DuVernay, primeira diretora negra a ser indicada ao prêmio de Melhor Direção no Globo de Ouro (2014) e Melhor Filme no Oscar (2015), essa modificação constitucional, na prática, como expresso no filme, gerou um aumento exponencial da população carcerária dos EUA, que, alimentada por prisões arbitrárias de negros acusados de ociosidade e vadiagem, transformava homens libertos em trabalhadores forçados em prol da reconstrução do sistema econômico escravocrata do Sul, devastado pela Guerra Civil. Abordando exatamente essa questão de seletividade punitiva, o filme “A 13ª Emenda” (2016) inicia e embasa suas reflexões sobre a questão negra no âmbito estadunidense. O documentário, que reúne diversos cientistas políticos e sociólogos, busca compreender o racismo estrutural nas instituições jurídicas dos Estados Unidos. Para isso, a partir do entendimento da relação entre a marginalização da população negra e o seu encarceramento em massa, a produção cinematográfica analisa as conjunturas históricas do pós-Emancipação e suas consequências para a contemporaneidade da América. 

Como demonstrado ao longo do filme, no início do século XX, em decorrência da construção midiática de uma imagem pejorativa do homem negro, a segurança local no Sul se viu construída sob ameaças – irreais – da integração racial. Mascaradas de contenção a possíveis problemas inter-raciais, leis segregacionistas foram implementadas primeiramente no âmbito sulista e posteriormente na jurisdição federal. Impedidos de terem o integral à educação e a serviços equânimes de moradia, por exemplo, os escravos recém-libertos do Sul viram sua emancipação se configurar como uma cidadania de segunda classe (SOUSA, 2008, p. 4), em que a verdadeira libertação se mostrou como falaciosa na realidade.

Além disso, fora a recorrência de assassinatos e linchamentos patrocinados pela Ku Klux Klan (KKK), o Estado se mostrou como o principal mecanismo contrário à liberdade dos negros, uma vez que, ao o que se mostrava condescendente com tais atos brutais, também reprimia qualquer manifestação popular que contestasse o ideal de supremacia branca, como explicitado no filme. Por conta disso, mais prisões arbitrárias foram executadas, fazendo com que, em menos de meio século, milhares de negros livres assem a compor o seletivo sistema prisional dos Estados Unidos.

O documentário avança cronologicamente e, em seguida, demonstra a atuação dos governos de Richard Nixon (1969-1974) e Ronald Reagan (1981-1989) no encarceramento em massa de negros a partir da década de 1970. Mascarado de combate ao uso de drogas e à violência urbana, pequenas infrações como posses supérfluas de maconha, por exemplo, serviram de pretexto para extensas prisões de pessoas já marginalizadas nesse período, como negros, pardos e latinos. Sendo vistas como medidas poucos efetivas, a atuação seletiva do Estado norte-americano nessa época consolidou-o como o principal agente do encarceramento afro-americano. Por meio de suas vias, houve um salto significativo da população carcerária, majoritariamente negra, nos EUA, quase dobrando entre 1970 e 1980, segundo os dados divulgados no próprio documentário “A 13ª Emenda” (2016).

Responsável pelo aprisionamento de quase um milhão de cidadãos americanos ao longo de vinte anos, as políticas prisionais de Nixon e Reagan foram possíveis graças ao estímulo do sentimento de medo primitivo na ampla sociedade estadunidense. Resgatando o ideário de monstruosidade do homem negro criado no início do século XX, a grande mídia dos EUA utilizava seus aparatos para legitimar as atuações nixoniana e reaganiana. Desse modo, a partir desse incentivo e da normalização do encarceramento, mais prisões arbitrárias de negros foram possíveis. Por conseguinte, recorrentemente, muitos inocentes foram taxados de criminosos. Sobre isso, o melhor exemplo dessa afirmação ocorreu com o caso dos “Cinco do Central Park” (1989), tema central da minissérie original “Olhos Que Condenam” (2019), distribuída pelo serviço de streaming Netflix.

Baseada em fatos, a mais recente produção serialística de Ava DuVernay conta, por meio de quatro episódios, a história de Kevin Richardson, Yusef Salaam, Raymond Santana, Antron McCray e Korey Wise, jovens não-brancos do Harlem acusados e presos injustamente por um ataque sexual a uma corredora no Central Park (EUA) em 1989. Indiciados por agressão, roubo e estupro sem provas forenses formais, os cinco rapazes, sendo quatro negros e um latino, não tiveram direito a uma defesa justa e tiveram seus direitos fundamentais violados pela justiça americana.

Como resultado de um racismo jurídico estrutural nos Estados Unidos, os cinco jovens, sendo quatro menores de idade, foram submetidos a interrogatórios inquisitórios que duraram horas (PUHL; DE CASTRO, 2020, p. 46), sem a presença de responsáveis legais ou advogados. Como está demonstrado na minissérie, os interrogadores e investigadores, mais preocupados em culpá-los do que compreender o crime, praticaram abusos e, por muitas vezes, deixaram o decoro profissional e a decência humana de lado. Posteriormente, os jovens ainda foram submetidos a um julgamento parcial e, inevitavelmente, foram condenados e trancafiados em um sistema prisional e reeducativo extremamente seletivo. 

Inflamados por uma opinião pública manipulada, esses jovens, mesmo inocentes, foram retratados como brutais e predadores, como historicamente ocorre com corpos negros nos Estados Unidos. A espetacularização midiática do caso dos “Cinco do Central Park”, atrelada ao falho sistema carcerário, atesta as contradições presentes no ideal de liberdade tão propagada sobre a nação estadunidense. Mesmo sendo posteriormente absolvidos e indenizados, como demonstrado na minissérie, as consequências desse erro jurídico afetaram a estabilidade emocional e física desses cinco homens, que hoje lutam pelo direito de um julgamento justo para todos os cidadãos americanos, criminosos ou não.

Dessa forma, a partir das reflexões suscitadas em “A 13ª Emenda” (2016) e “Olhos Que Condenam” (2019), é possível compreender que a seletividade presente no sistema carcerário estadunidense se apresenta como o principal empecilho para a universalização das liberdades civis dos indivíduos no país. Tendo como norte inicial o pós-Emancipação ao final do século XIX, compreende-se que o racismo está juridicamente institucionalizado e, em alguns casos, como no “Cinco do Central Park”, é usado como pretexto para incriminar inocentes. Desse modo, contornando a realidade, para a plena compreensão da futura história da América urge que a igualdade seja, junto com a liberdade, um lema a ser seguido pelos EUA e pelo mundo, para que olhos não mais condenem, mas somente a justiça.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 6g1u5a

A DÉCIMA Terceira Emenda. Direção: Ava DuVernay. Produção: Ava DuVernay; Ben Cotner. Estados Unidos: Netflix, 2016. (100 min).

ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

CARSON, Clayborne (org.); KING, Martin Luther. A autobiografia de Martin Luther King. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

DU BOIS, W.E.B. “Sobre nossos embates espirituais”. In: __________. As Almas da Gente Negra. Tradução: Heloisa Toller Gomes. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p. 37-46.

KRAUZE, Enrique. “Prefácio”. In: FUKUYAMA, Francis (Org.). Ficando para trás: explicando a crescente distância entre América Latina e Estados Unidos. Tradução: Nivaldo Montingelli Jr. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. p. 5-9.

OLHOS Que Condenam. Minissérie. Direção: Ava DuVernay. Produção: Ava DuVernay et al. Netflix. Estados Unidos, 2019. 4 episódios. (296 min).

PUHL, Eduardo; DE CASTRO, Matheus Felipe. Olhos Que Condenam: preconcento racial, punitivismo seletivo e relevância do estado de inocência. Revista de Direito Penal, Processo Penal e Constituição, v. 6, n. 1, p. 42-61, 2020. Disponível em: <https://www.indexlaw.org/index.php/direitopenal/article/view/6450>. o em: 30 dez. 2020.

SOUSA, Rodrigo Farias. A não-violência e os movimentos sociais nos EUA nos anos 1960. Diálogos e Aproximações: Seminário de Pesquisa de Pós-Graduação em História da UFRJ. Rio de Janeiro: IFCS/UFRJ, 2008.


Fonte: Brasil Escola - /historia/o-seletivo-sistema-prisional-e-o-mito-da-liberdade-nos-estados-unidos-uma-reflexao-a-partir-de-a-13-emenda-2016-e-olhos-que-condenam-2019.htm